[vc_row][vc_column][vc_column_text]
Por Paula Ramón
Edição 159 – Dezembro de 2019
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Cheguei a Ciudad Guayana, no Sudeste da Venezuela, no início da noite. Era terça-feira, mas havia poucos carros circulando. As ruas, quase às escuras devido à iluminação precária, também estavam silenciosas. Tanto assim que na entrada do hotel era possível ouvir os grilos no jardim. “As pessoas se recolhem cedo”, disse Júnior Hernández, o motorista que me acompanhava na cidade. “Por causa da violência, não há muitos locais abertos depois das oito da noite.”
De fato. Quando saímos para jantar, encontramos aberta apenas uma arepera, quase vazia, onde me chamou a atenção um cartaz que dizia: “Proibido usar armas de fogo neste espaço.”
Areperas são pequenos estabelecimentos, parecidos com lanchonetes, que servem arepas, o tradicional pão de milho, com recheios variados: carne louca, pelúa (queijo amarelo com carne) ou dominó (feijão com queijo). Pedi um clássico da cozinha regional, arepa com queijo guayanés, e um suco de maracujá. Minha conta deu 70 mil bolívares, ou cerca de 3,50 dólares, no câmbio do dia – quase duas vezes o salário mínimo oficial da Venezuela, que era 40 mil bolívares no início de outubro, quando fui para lá (hoje é 150 mil bolívares).
Logo depois de nos sentarmos em uma das mesas de madeira com toalhas verdes, entraram na arepera três homens, um deles com uma pistola automática bem visível na cintura. “São policiais”, comentou Hernández. Perguntei como sabia disso, pois os homens não estavam fardados, e ele respondeu: “A caminhonete branca estacionada ali na frente.” Nessa região, todo mundo teme as caminhonetes brancas, em geral usadas por membros de algum corpo armado do governo de Nicolás Maduro. São muitos os relatos de detenções arbitrárias, extorsões e execuções cometidas por essas forças de segurança.
Voltamos ao hotel atravessando as ruas escuras e sem trânsito. No caminho, vejo várias construções interrompidas, restos sinistros dos tempos de bonança na Venezuela. Em frente ao hotel de três andares, quatro homens sentados em cadeiras de plástico cuidavam da segurança do local.
De dia, Ciudad Guayana é muito diferente. Quando deixo o hotel depois do café da manhã, me deparo com um trânsito agitado, lojas bem abastecidas, gente comprando comida e remédios, restaurantes e padarias funcionando sem contratempos. Exceto pelas filas quilométricas nos postos de gasolina e caixas eletrônicos, eu poderia esquecer por alguns minutos que estou na Venezuela, país onde quase tudo entrou em colapso.
Ciudad Guayana é uma cidade planejada que reuniu em 1961 duas localidades preexistentes, Puerto Ordaz e San Félix, além de outras comunidades menores. Foi o mais ambicioso projeto urbanístico-industrial já realizado na Venezuela, uma aposta no futuro radiante que estaria reservado ao país. Não à toa, nas escolas costumava ser chamada de Brasília venezuelana, por causa de suas avenidas largas, zonas habitacionais e parques. “Ciudad Guayana foi provavelmente a primeira tentativa de montar uma equipe multidisciplinar de economistas, cientistas sociais, advogados, urbanistas, arquitetos, engenheiros e outros para planejar uma nova cidade”, explica Donald Appleyard no livro Planning a Pluralistic City. Hoje, é a sexta cidade mais populosa do país e a primeira do estado de Bolívar, com quase 1 milhão de habitantes, muitos dos quais ainda não a veem como a sua cidade e preferem dizer que moram em Puerto Ordaz ou San Félix – que são agora apenas dois dos distritos, embora tenham sido a origem de tudo.
Encravada entre as margens dos rios Caroní e Orinoco, a antiga cidade de Puerto Ordaz foi fundada em 1952 para abrigar os empregados da Orinoco Mining Company, uma subsidiária da norte-americana US Steel que se instalou na região para explorar as jazidas de ferro descobertas na segunda metade do século XIX. O nome homenageia o explorador espanhol Diego de Ordaz, que no início do século XVI comandou malogradas expedições àquele território em busca do mítico Eldorado.
A exploração mineral e os rios caudalosos fizeram dessa área uma das mais promissoras para a economia da Venezuela. “Havia todo o potencial hidrelétrico do Rio Caroní, e depois começou a exploração do ferro. Essa combinação deu lugar à grande siderúrgica dos anos 1950, e a partir daí veio tudo. Do ponto de vista dos recursos, parecia realmente um Eldorado, pois foi descoberto um depois do outro: aço, alumínio, ouro…”, descreveu a engenheira e urbanista María Nuria De Cesaris, que se mudou para Ciudad Guayana em 1979 e trabalhou em projetos de desenvolvimento da cidade.
Em 1960, o governo criou a Corporação Venezuelana de Guayana (CVG) com o objetivo de desenvolver a região, cujas jazidas de vários metais prometiam ser uma alternativa ao petróleo, que monopolizava a economia do país desde a sua descoberta no começo do século XX.
Quando Ciudad Guayana floresceu, muita gente, tanto das diferentes regiões da Venezuela como de outros países, foi para lá. A companhia era para os cidadãos desse lado do mapa o que a Petróleos de Venezuela era para o estado de Zulia, do lado oposto: uma imensa fonte de riqueza.
Pouco a pouco, a CVG foi criando divisões para explorar os recursos naturais do estado de Bolívar e outros, vizinhos. Hoje, não se sabe mais quanto essas empresas produzem. O vice-presidente setorial da Área Econômica da Venezuela, Tareck El Aissami, disse que a região alcançou neste ano uma taxa histórica de produtividade, sem apresentar dados que sustentem sua afirmação. Mas, diferentemente do que propagam as autoridades, o que se vê na zona industrial de Ciudad Guayana são fábricas paralisadas, algumas mais parecidas com cemitérios de máquinas enormes. Até mesmo os cartazes nas entradas desses locais com a imagem de Hugo Chávez de boina vermelha estão desbotados e puídos.
“Temos aqui uma capacidade instalada de até 25 milhões de toneladas de ferro por ano, mas em 2019 não chegamos a produzir nem 1 milhão, por causa do desgaste do maquinário, entre outras coisas”, afirmou a dirigente sindical Yarudid González, operária da Ferrominera Orinoco, uma das empresas pertencentes à CVG. Alguns dirigentes sindicais contam que as instalações industriais, além de pouco produtivas, estão sendo saqueadas pelos executivos que as comandam.
Como a produção foi reduzida, apenas uma pequena parte dos operários comparece ao trabalho, a fim de garantir o salário mínimo e uma caixa de mantimentos, que às vezes é entregue, às vezes não.
A estagnação da indústria tem levado os operários a procurarem outras fontes de renda, inclusive nas dezenas de garimpos de ouro na região. Convertidos à aventura do ouro, eles se afundam na selva sem nenhuma experiência, passando a viver em locais remotos, instalados em casebres precários, sem qualquer infraestrutura, dominados por outras leis que não as da Justiça. Alguns jamais voltam para suas casas. “Milhares de demitidos foram para o comércio informal ou para o garimpo de ouro. E ninguém sabe onde estão agora, se ainda vivem nas minas, ou se morreram lá”, diz Fernando Serrano, porta-voz de um sindicato da Indústria Venezuelana do Alumínio (Venalum), também pertencente à CVG e baseada na zona industrial de Ciudad Guayana.
Em 2011, quando o governo de Hugo Chávez baixou um decreto-lei estatizando a extração de ouro e atividades correlatas, anunciou-se uma série de planos para organizar e controlar a mineração no país. A ideia, mais uma vez, era obter uma nova fonte de receita, para além do petróleo. O mais famoso desses projetos foi o Arco Mineiro do Orinoco (AMO), que só deslanchou em 2016, no governo de Nicolás Maduro, num território de 111 843,7 km2 (equivalente a 12% da área total da Venezuela). O AMO inclui Ciudad Guayana, além de zonas de preservação ambiental e terras indígenas, e é dividido em quatro setores onde há reservas de ouro, diamante, ferro, cobre, bauxita, terras raras, caulim, dolomita e coltan (columbita e tantalita). Com o projeto, Maduro ressuscitou o mito do Eldorado em pleno século XXI. Um Eldorado feito de tragédias, grandes e pequenas, como pude constatar em El Callao, Tumeremo e El Dorado – as cidades da região que visitei.
Quando se atravessa a fronteira do Brasil rumo à Venezuela, e segue-se para o Norte pela Rodovia Troncal 10, raramente se é são parado nas barreiras policiais. Na direção oposta, entretanto, o percurso pode se transformar em uma via-crúcis de revistas feitas pela Guarda Nacional venezuelana. “Eles confiscam a gasolina das pessoas e a revendem”, diz o motorista que me leva de Ciudad Guayana a El Callao. Nas viagens pela Troncal 10, é necessário carregar combustível no porta-malas, pois não há postos de gasolina em funcionamento no caminho. Em nossa viagem tivemos sorte: fomos parados uma única vez e liberados rapidamente.
Na época em que os venezuelanos tinham algum dinheiro, os moradores das localidades vizinhas costumavam ir a El Callao para comprar alianças, anéis de formatura ou medalhas de batismo. A cidade era famosa por suas joalherias, cujo ouro provinha dos vários garimpos nas proximidades. Também era conhecida pelo Carnaval animado e por ser um dos polos criativos do calipso na Venezuela. Nos últimos anos, sua população – 22 mil habitantes, segundo o censo de 2011 – aumentou significativamente devido à grande afluência de pessoas em busca de ouro.
No Centro de El Callao, as ruas fervilham de gente, centenas de motos disparam para lá e para cá tornando o trânsito ainda mais confuso. As casas coloridas e protegidas com grades parecem não ter deixado espaço para mais nenhuma construção. Em toda parte, podem-se encontrar lojas de equipamento de mineração e pontos de compra e venda de ouro.
“O boom da mineração começou faz uns cinco ou seis anos. El Callao era uma cidadezinha muito sossegada, os garimpeiros se conheciam, não tinha violência. Agora todas as lojas de ourives foram substituídas por pontos de compra e venda de ouro”, disse Dijhonny Yori, de 32 anos, dono de uma emissora de rádio, a Ruttas FM. Ele contou que, quando começou o boom, muita gente vinha à cidade também para comprar comida. “Enquanto em outros locais havia escassez, aqui tinha de tudo, e vendíamos barato, porque queríamos dinheiro vivo. Com as notas você podia comprar ouro para depois revender, e aí ter um bom lucro.” As notas de bolívares, em alguns comércios de El Callao, são mais valorizadas que o dólar – do qual os garimpeiros desconfiam, por não estarem habituados a lidar com a moeda estrangeira. Esse é mais um efeito da barafunda econômica na Venezuela.
Entro numa padaria com ar condicionado. No balcão, há uma boa variedade de pães, alguns em forma de animais. Faço meu pedido e procuro uma mesa. Um policial uniformizado me pergunta: “Quer sentar?” Sobre sua mesa, há um fuzil e uma touca ninja. “Não, obrigada”, respondo, indo para o outro lado.
Trata-se de um membro das Forças de Ações Especiais (Faes), criadas em 2017 e subordinadas à Polícia Nacional Bolivariana, com o objetivo de combater o crime organizado, como anunciou Maduro à época. Hoje, contudo, as Faes são vistas pela população como um esquadrão da morte. Num relatório de julho de 2019, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, recomendou a dissolução dessa tropa de elite, com base em depoimentos que apontam as Faes como responsáveis por centenas de execuções.
Ao terminar o lanche, o policial veste a touca estampada com a imagem de uma caveira, apanha o fuzil e vai embora, com o rosto todo coberto, exceto os olhos. Quando saio da padaria, me deparo outra vez com ele: o policial está na esquina, mandando todo mundo “circular sem parar”. Outros “cara-tapadas” – como os membros das Faes são chamados em El Callao – patrulham a cidade pilotando motos, como fazem todo dia. “Eles vivem espalhando o terror aqui. São uns facínoras. Se vão revistar tua casa, roubam tudo”, afirma César,[1] dono de vários pontos de compra e venda de ouro na cidade. “Outro dia, uma senhora me contou que os cara-tapadas queimaram o acampamento dela e quebraram até sua bateia de garimpar, que era tudo o que ela tinha”, continua. “Olha aqui”, César me diz, mostrando no celular os contatos de dezenas de policiais. “Extorsão pura. Todos eles me pararam para pedir dinheiro e me deram o número de telefone, dizendo que seria para o caso de eu precisar de ajuda.”
Pelo segundo ano consecutivo, El Callao foi o município do país com a maior taxa de homicídios da Venezuela – 620 assassinatos por 100 mil habitantes, em 2018 (quase oito vezes a já altíssima média do país, de 81,4 por 100 mil habitantes). O segundo lugar no ranking coube à cidade vizinha de Roscio, com uma taxa de 458 homicídios por 100 mil habitantes. Os números são da ONG Observatório Venezuelano de Violência (OVV), que é a fonte mais confiável em matéria de crime no país. O relatório diz que a criminalidade em ambos os municípios “está ligada à atividade de mineração legal e ilegal, aos grupos armados e à presença dos ‘sindicatos’ [como são chamadas as facções criminosas que operam nos garimpos], tudo somado à violência letal das operações policiais e militares na região”.
Depois do rush do final da tarde, surgem pequenos grupos no Centro de El Callao que se põem a varrer as calçadas, tentando achar minúsculos grãos de ouro que possam ter caído dos bolsos de algum incauto. Cada pessoa tem seu trecho de calçada para varrer e ninguém pisa no terreno do outro.
É quase meia-noite, e alguns garimpeiros vão aos bares-prostíbulos, aqui chamados de corruptelas – ou currutelas, na pronúncia acelerada do oriente venezuelano. No centro do recinto principal de um desses bares há um poste de pole dance. Luzes vermelhas, verdes e azuis produzem um efeito de discoteca no salão decadente. Nos fundos, passando uma cortina, está o pátio com os banheiros e os quartos para onde as mulheres levam seus clientes.
Amanda, de 22 anos, mora num desses quartos. É bonita, tem a pele lisa, cintura fina e longas unhas de acrílico decoradas com esmalte azul-claro e pontos brilhantes. Veste shorts curtos e um top também curto. No pescoço, nas costas e nos braços, ela mandou tatuar os nomes da mãe, do ex-marido e dos filhos.
Há um ano está “trabalhando na praça”, como se referem aqui à prostituição, e nesse período teve 23 ataques de malária. Com voz suave e fala rápida, ela me conta que tem três filhos e que o pai deles, com quem viveu por cinco anos, foi morto porque “era malandro”. As crianças vivem na cidade de El Tigre e são criadas por sua mãe, que Amanda só conheceu quando tinha 8 anos. “Eu faço isso pelos meus filhos”, ela diz, referindo-se ao trabalho de prostituta. “Em duas semanas já consegui levar três cestas de comida para minha mãe, além de dinheiro vivo, que lá não se consegue.”
Amanda começou a se prostituir em Las Claritas, outro povoado de garimpo, mais ao Sul. Depois de se recuperar de um contágio de malária, instalou-se em El Callao. Ela cobra 5 pontos de ouro por “programa” – se o pagamento for em dinheiro vivo, 20 dólares. Em uma noite movimentada pode fazer mais de quinze programas.
O “ponto” – equivalente a 100 mg – é a menor das unidades de comercialização do ouro. Em outubro, 1 ponto estava cotado em 55 mil bolívares, ou quase 3 dólares na cotação local (na internacional, para a mesma quantidade, eram 4,8 dólares). Para obter um preço melhor pelo seu produto, alguns garimpeiros venezuelanos têm vendido o ouro em Pacaraima ou Boa Vista, em Roraima. A fim de evitar confiscos da Guarda Nacional venezuelana durante a viagem até o Brasil, eles às vezes mandam fundir o ouro e transformá-lo em joia.
Amanda carrega no pescoço uma medalha de Nossa Senhora do Vale, presente do ex-marido, pendurada em uma correntinha que mandou fazer com o ouro que ganhou. Enquanto conversamos, passam alguns clientes. De repente, as pessoas que me guiam em El Callao acenam para irmos embora. “Desabafei”, diz Amanda se despedindo, enquanto enxuga os olhos molhados.
“É melhor a gente sair logo daqui”, avisa Ana, moradora da cidade que me acompanha para que eu possa transitar com segurança. Bem em frente ao prostíbulo, acabava de estacionar uma caminhonete branca.
O medo é uma constante nessa parte do mapa. Medo dos policiais e militares, das facções criminosas e também da guerrilha – todos armados e disputando o controle das minas da região. As facções criminosas ganharam o nome de “sindicatos” porque surgiram dentro de alguns sindicatos da construção civil, que por volta de 2007 foram dominados por delinquentes que praticavam várias ilegalidades, como extorsão e venda de empregos. “Quando aconteceu a queda da atividade econômica e a crise na construção, por volta de 2011, esses criminosos dos sindicatos migraram para as áreas de mineração, ao Sul do estado de Bolívar”, explica Óscar Murillo, representante em Ciudad Guayana da ONG Provea (Programa Venezuelano de Educação/Ação em Direitos Humanos). Nas minas, eles se juntaram aos pranes, como são chamados os chefes de quadrilhas. O nome pran, surgido nas cadeias venezuelanas, é possivelmente uma onomatopeia para o tiro de revólver.
“Isso aqui é uma bomba-relógio, você não sabe quem vai te foder: se os bandidos, a Diretoria-Geral de Contrainteligência Militar, o governo ou as Faes”, afirma Omar, um produtor de eventos que tem ajudado os “sindicatos” no contato com o governo. Quando fui apresentada a ele dentro de um bodegón, no Centro de El Callao, Omar carregava uma sacola cheia de bolívares numa das mãos e um capacete de moto na outra. Mas negou-se a conversar no bar. “Aqui as paredes têm ouvidos”, disse.
No quarto de hotel onde mora com a namorada, ele conta que os “sindicatos” já não mandam em El Callao – a versão coincide com a de alguns moradores e a do deputado Américo de Grazia (do partido La Causa Radical), que tem denunciado atividades do crime organizado na região e está ameaçado de morte. Na versão de Omar, as facções criminosas se instalaram nas minas com o respaldo de autoridades. Posteriormente, o governo decidiu reassumir o controle do negócio do ouro e enviou esquadrões da morte para “limpar” a região, assassinando os antigos aliados.
Um dos chefões do crime, Yorman Márquez – conhecido como El Gordo Bayón – foi morto no Centro de Caracas em 2014. O braço direito de El Gordo, Phanor San Clemente (El Capitán), foi assassinado em outubro de 2018. Segundo Omar, os dois atuavam no contrabando de ouro e estiveram entre os primeiros a se instalar na região com o aval oficial. Uma semana após minha visita, Marcos Zapata, conhecido como Marcopolo e parceiro de outro chefão do crime, El Toto, foi morto pelas forças do Estado em outra cidade mais ao Norte.
Na região de El Callao, fala-se também que o Exército de Libertação Nacional (ELN), antigo grupo guerrilheiro colombiano, está agindo a cerca de 100 km da cidade, na Serra de Imataca (ao lado da fronteira com a Guiana), onde teria se apropriado de alguns garimpos. Mas Omar diz não acreditar nisso e acha que o governo venezuelano só não desmente os boatos sobre as atividades do ELN no país para poder colocar na conta dos guerrilheiros os crimes que, na sua opinião, foram cometidos pelas forças do Estado. “O governo simplesmente não quer assumir a responsabilidade pelos assassinatos cometidos nos garimpos”, afirma. No ano passado, após cidadãos denunciarem um massacre na Serra de Imataca, um general negou que houvesse guerrilheiros operando na região. As autoridades têm evitado o tema – e nenhuma respondeu aos meus pedidos de entrevista.
A quantidade de ouro extraída nas minas do estado de Bolívar é um mistério, uma vez que não há dados oficiais, nem extraoficiais. Omar arrisca alguns números relativos à região de El Callao. “Eu gosto de fazer contas”, diz ele, sorrindo. “Aqui tem 643 moinhos artesanais para processar os sacos de terras escavadas pelos garimpeiros e extrair o ouro delas. Suponhamos que cada moinho tire 10 gramas de ouro por dia – já são, por baixo, 6 430 gramas, ou 6,4 kg. Por mês, dá 192 kg. Existe a Mibiturven, que tem capacidade para produzir em torno de 675 kg por mês. E ainda oito usinas de processamento ativas…” Ele olha para o teto por alguns segundos, e conclui: “Somando tudo, a gente pode chegar a quase 1 tonelada por mês, só em El Callao. O grosso sai do país ilegalmente.” A Mibiturven (Mineração Binacional Turquia-Venezuela) é uma companhia de capital misto que resultou da fusão, em 2018, da estatal de exploração de ouro CVG Minerven com uma empresa sediada na Turquia. Sua usina é a que tem a maior capacidade de processamento de ouro na região, mas não há dados oficiais sobre a produção.
O Banco Central nem sempre publica os números detalhados do setor de mineração. Mas um estudo realizado pelos economistas venezuelanos Asdrúbal Oliveros e Guillermo Arcay, da consultoria Ecoanalítica (sediada em Caracas), apontou que entre 1998 e 2011, ano em que ocorreu a estatização dos garimpos, a mineração ilegal era 17,3 vezes maior que a legal. O mesmo estudo indicou que a estatização não mudou o cenário. A Rede Amazônica de Informação Socioambiental, que trabalha com dados de diversas fontes, calcula que no estado de Bolívar há quase 2 mil pontos de mineração ilegais, concentrados principalmente na Serra de Imataca e Las Cristinas.
Não é recomendável visitar El Callao e os garimpos nos arredores sem a companhia de habitantes locais. Na minha visita a um dos núcleos de mineração mais conhecidos da região, El Peru, a cerca de 30 km da cidade, me acompanharam Ana e seu marido, um jornalista e um funcionário da Mibiturven chamado Isaías.
Isaías passou mais da metade de seus 57 anos de vida no garimpo, onde perdeu alguns dentes. Tem a pele torrada pelo sol, as mãos duras como pedra e gosta de conversar. Depois que denunciou para seus chefes na Mibiturven que operários estavam roubando areias acumuladas na usina de processamento de ouro, ganhou alguns inimigos. “Isaías está jurado de morte”, diz Ana, que trabalha providenciando documentos para garimpeiros (como uma espécie de despachante). O marido dela comenta: “Aqui você tem que ficar do lado dos mineiros, que são teus companheiros, não do lado do governo.”
Deixamos El Callao seguindo por uma artéria marrom que se desprende da Rodovia Troncal 10. “Isso aqui era uma área de mineração do Estado que devia ser explorada de forma controlada, mas se encheu de gente de várias partes do país”, diz Isaías. No caminho, passamos por um conjunto de casebres feitos de folhas de lata. É o setor San Miguel, onde alguns garimpeiros dentro de um riacho, com água até o joelho e munidos de bateias, tentavam a sorte. Depois, atravessamos o setor Caratal, onde vivem cerca de 1 500 pessoas, e Isaías chamou a minha atenção para um terreno gradeado com um gramado seco e irregular: “Diz a lenda que ali foi disputada a primeira partida de futebol da Venezuela, em 1876, organizada por um galês que tinha vindo atrás do ouro.”
Entramos, então, em uma estrada de terra acessível apenas por carros com tração nas quatro rodas e, depois de atravessar trechos de mata cerrada, chegamos finalmente à mina Yin Yan, uma das principais e mais perigosas do setor El Peru. Quando nos aproximamos do local, abrimos as janelas do carro para que as pessoas pudessem nos ver, porque ali desconhecidos não são bem-vindos. A desconfiança é regra entre a população venezuelana em geral, mas nos garimpos se manifesta de forma mais intensa. As pessoas temem umas às outras, e boa parte delas confia mais em criminosos do que em policiais – dizem que os primeiros respeitam regras que não são seguidas pelos segundos. “Quando chegam os do governo, atiram contra todos. Eles nos revistam e às vezes levam o que encontram”, diz Johnny, um garimpeiro magro e de cabelos pretos na altura dos ombros com quem conversei na mina Yin Yan. Fazia seis meses que ele tinha vindo de Caracas para tentar a vida na mineração.
O acampamento em volta da mina de Yin Yan é uma grande clareira poeirenta, cercada de mata. Num canto, haviam sido construídas algumas buguis, como são chamadas as casas feitas de armação de madeira e cobertas com plástico preto – parecem caixas estreitas onde mal cabe uma pessoa. Ana calcula que nessa mina devem viver 3 mil pessoas, mas alguns garimpeiros acampam apenas por algumas semanas, enquanto outros montam casa para passar meses.
Como não há, no local, água adequada para processar o ouro, os garimpeiros precisam recorrer a caminhonetes que a transportam até ali em caixas enormes. A mina também não dispõe de esgoto, e as pessoas fazem suas necessidades em fossas no mato ou no rio sujo que corre por perto. Nesse mesmo rio, avistei meninos entre 10 e 12 anos com bateias, tentando achar ouro. Algumas mulheres trabalham nas escavações das minas, mas a maioria delas cuida da venda de refeições e mantimentos. São chamadas de “cozinheiras”, nome que às vezes é usado também para se referir às prostitutas. Curiosamente, esse acampamento – como alguns outros – tem internet, captada por meio de antenas, e os garimpeiros podem usá-la caso paguem a quem controla as minas. Graças à internet, Johnny pode falar com sua mulher diariamente.
Os garimpeiros estão com o torso nu, o corpo coberto de poeira. Usam meias encardidas, brancas ou coloridas, que chegam até os joelhos. Para não serem confundidos com policiais e, por isso, perseguidos por algum grupo criminoso, eles não colocam botas. Contaram-me sobre um militar de 19 anos, que após desertar e ir para ali, foi sequestrado por homens de uma facção criminosa que o tomaram por espião e lhe arrancaram os olhos, a língua e as mãos.
Johnny coordena a cábrea, uma espécie de guindaste com uma enorme polia acionada por dois homens e instalada em cima da entrada da mina – um buraco de cerca de 20 metros de profundidade. A cábrea, ali chamada de “máquina”, faz funcionar o “elevador”, que conduz os garimpeiros pelo buraco. Um por um, eles se sentam num banco de madeira amarrado à corda enrolada na polia e descem até o fundo do fosso. Logo que começa a descida, acendem a lanterna que carregam na cabeça. O movimento de todos é tão sincronizado que eles parecem participar de um balé.
Há várias maneiras de garimpar o ouro. Em Yin Yan, os homens preferem extrair a terra de túneis cavoucados 20 metros abaixo da superfície. Lá no fundo, colocam essa terra em sacos de 20 kg, que são em seguida içados para o alto e empilhados perto da mina. Mais tarde, serão levados para um moinho que fará a extração do ouro. Ninguém rouba os sacos com terra. “Cada um tem uma amarração particular, uma marca pessoal do garimpeiro”, diz Isaías, quando pergunto se aquelas pilhas de sacos não atraíam gatunos. “Além disso, todo mundo conhece o tipo de material que é extraído em cada mina. Se alguém levar a um moinho um material diferente, logo vão descobrir que foi roubado.”
O trabalho é interminável, e nunca se sabe quanto ouro sairá de cada saco de terra – o que, para Johnny, depende da vontade divina. “Deus é o verdadeiro dono do ouro”, ele diz.
Os túneis dessas minas da região de El Callao, abertos há décadas, variam muito de forma e de tamanho. Alguns são tão grandes e bem estruturados que dá para andar em pé por vários níveis. Outros são buracos precários e inseguros, onde mal cabe uma pessoa, que precisa se arrastar na terra. Há ainda túneis como o da mina cuja entrada Johnny coordena: galerias entabuadas de no máximo 1,5 metro de altura, o que obriga os homens a avançar agachados.
Johnny não revela quanto fatura nas minas, mas diz que é muito mais do que ganhava em Caracas, onde trabalhava como operário numa empresa e deixou a mulher e os três filhos. “Minha esposa tinha um emprego num ministério, mas você acha que alguém pode trabalhar em troca de um salário mínimo? É impossível, o dinheiro não dá”, afirma. Ele planejava juntar, até o final do ano, quantia suficiente para ir embora – e não voltar mais. “Eu quero ficar tranquilo, dormir tranquilo. Isso aqui é muito perigoso.”
Na economia do ouro, os mineiros são, obviamente, a parte mais fraca. Eles devem custear o próprio transporte até as minas, o alojamento e o equipamento. Passam horas debaixo da terra e semanas ou meses nos acampamentos. Uma parte do metal obtido é entregue ao proprietário do moinho; outra parte vai para quem controla a mina ou para o pagamento das chamadas vacinas – propinas cobradas pelo grupo criminoso que domina o local.
Os moinhos fazem quase artesanalmente o serviço de extração do ouro da terra nos sacos. O ouro obtido é entregue ao garimpeiro, que deixa parte dele como pagamento. Depois disso, os moinhos vendem a mesma terra para as usinas, que vão reprocessá-la com máquinas melhores e produtos químicos mais potentes, extraindo dela o ouro que os moinhos não foram capazes de retirar. Os donos dos moinhos, portanto, além de receberem uma comissão do garimpeiro, lucram com a venda da terra que não tiveram o trabalho de escavar. Quanto às usinas de processamento, estas pagam o que bem entendem pela terra, da qual vão extrair uma quantidade de ouro ainda maior que a retirada pelos moinhos.
Em um moinho do setor Caratal, próximo de El Peru, encontro sete garimpeiros processando eles mesmos dezenas de sacos de terra que coletaram ao longo da semana. O local é um cubículo de 5 m2 com telhado de zinco, e o maquinário ocupa quase todo o espaço, emitindo um barulho insuportável, como um martelar forte e incessante. Os garimpeiros primeiro despejam o conteúdo de cada saco num tambor giratório com bolas de metal soltas, cujo movimento frenético tritura a terra. O choque constante dessas bolas é a parte mais barulhenta do processo. Cerca de meia hora depois, os garimpeiros despejam a terra triturada num recipiente, no qual acrescentam água e mercúrio líquido. O mercúrio isola da terra e de outros metais as partículas de ouro, que acabam por formar bolinhas com aparência esbranquiçada.
“Aqui a gente vira geólogo, aprende onde escavar, como procurar a terra”, comenta José, ex-funcionário de Mibiturven, de 42 anos, enquanto me mostra o pouco ouro que conseguiu obter no dia, embrulhado numa folha pautada de papel que ele carrega em um dos bolsos da calça. No outro, ele leva um vidrinho de mercúrio. Enquanto processa o seu ouro, dá goles num copo de cerveja. O ganho bruto de um garimpeiro numa quinzena, se tudo for favorável, pode chegar a 300 dólares, me diz José.
Vamos a outra mina no setor El Peru. A vegetação nessa área é mais densa e pode-se ouvir a distância, misturado ao canto dos pássaros, o barulho de outros moinhos. Aqui meus guias me deixam tirar fotos e fazer anotações, porque o local parece menos perigoso. Fotografo os garimpeiros em suas redes. É sábado à tarde, os trabalhos de escavação já terminaram, e eles descansam na frente do seu bugui, a poucos metros da entrada da mina.
Maria José, de 38 anos, era professora do ensino fundamental no estado de Guárico, mas as dificuldades aumentaram e ela decidiu ir para os garimpos. Chegou a El Peru há um ano e meio, onde conheceu Francisco, de 42 anos, com quem se relaciona agora. “Como muitas pessoas estavam vindo trabalhar nas minas por causa da crise, tomei coragem e vim também. Eu não tinha como alimentar os meus filhos”, me conta a ex-professora em voz baixa, com os olhos voltados para o chão.
Ela foi primeiramente para o setor Caratal, onde trabalhou como cozinheira. “Era horrível, imagina. Aquele monte de homens, eu não conhecia ninguém, estava sozinha, sentia muito medo.” Depois, Maria José foi para El Peru e se tornou garimpeira. Desde que chegou nas minas, não vê os filhos, mas envia dinheiro para eles mensalmente. Seu bugui tem o dobro do tamanho dos de Yin Yan. Está coberto de plástico azul e dispõe de uma varanda coberta improvisada, onde ela e Francisco penduraram suas redes. Uma cachorra vira-lata, Catira – “loira”, na gíria venezuelana –, aproveita a sombra. Por ter pegado malária quatro vezes desde sua chegada, Maria José protegeu com um mosquiteiro a rede preta e vermelha onde está deitada. “Olha para mim, olha como estou”, diz, apontando para si mesma. Ela veste uma regata rosa e um short preto. Suas unhas curtas estão pintadas de esmalte branco. “Eu gosto de estar bonita, mas aqui tenho que me jogar no fundo da terra.”
Alguns quilômetros adiante, no setor Chile, encontro Héctor Calzadilla, outro funcionário da Mibiturven. Com a desvalorização dos salários, ele passou a se dividir entre o trabalho numa pequena loja de comida que abriu em sua casa e a supervisão de uma mina. “Com o salário de uma semana na Mibiturven eu compro apenas um frango. Para comer um arroz com frango, tenho que trabalhar duas semanas”, calcula. Há mais de quarenta anos ele está na região e já trabalhou em todas as etapas da cadeia produtiva do ouro.
Calzadilla me convida para entrar em uma mina. “Essa é antiga. Há décadas que as pessoas procuram ouro aqui”, ele diz, enquanto abre os cadeados da porta de metal que protege o túnel de acesso. Entrega-me uma lanterna e brinca: “Lá dentro você vai sentir o ar condicionado.” Logo que atravesso a porta estreita de acesso, a temperatura quase fria da mina me alivia um pouco do calor asfixiante. Na entrada, não consigo ver nada além de um buraco negro. Mas, quando acendemos as lanternas, enxergo um túnel comprido, cujas paredes forradas de pedra parecem firmes. Enquanto avançamos, o túnel vai ficando mais largo e percebo uma série de outros túneis menores e bem estreitos escavados a partir dessa galeria maior. Calzadilla aponta sua lanterna para as paredes e me explica as diferenças entre cada formação rochosa. Onde eu só avisto uma variedade de marrons, terracotas e alguns brancos, ele vê promessas de ouro.
No domingo de manhã, sigo para Tumeremo, a 40 km de El Callao. À beira da estrada, dezenas de homens carregam suas botas e bateias, rumo ao Rio Yuruari. Cai uma chuvinha e, quando estou próxima da cidade, desponta um arco-íris. Diz uma lenda irlandesa que, embaixo do arco-íris se encontra um pote de ouro. Aqui, em Tumeremo, as pessoas costumavam falar que o ouro está em toda parte, até nas paredes das casas antigas – uma história da região conta que uma família, ao derrubar a parede de sua casa, encontrou escondido ali um cochano, isto é, uma pepita de ouro.
O otimismo, porém, abandonou muita gente desde que, no início do ano, o acesso às 26 zonas de exploração mineira da redondeza foi bloqueado por militares, como denunciaram garimpeiros locais. “A cidade está morta”, me diz Junior, um jornalista da cidade. “Desde que houve o bloqueio das minas, o movimento caiu muito e as pessoas mal conseguem sobreviver.”
Tumeremo é conhecida pela violência. Em março de 2016, em uma das minas da região, a Atenas, aconteceu uma chacina brutal, fazendo com que as atenções do país se voltassem para a cidade de pouco menos de 100 mil habitantes. De uma vez, dezessete pessoas foram mortas na Serra de Imataca pelo grupo criminoso de Jamilton Andres Ulloa Suárez, conhecido como El Topo – essa é a versão oficial. No dia seguinte à chacina, o acesso às minas foi bloqueado pelos militares na altura da base militar de Tarabay, que fica no caminho das áreas de garimpo. Os parentes foram impedidos de ter acesso aos seus mortos. Houve protestos durante dias, até que fosse atendido o apelo das famílias. Algumas delas dizem não saber quem enterraram, porque os corpos, além de decompostos, estavam esquartejados.
Muitas pessoas, de várias regiões da Venezuela, têm ido tentar a sorte nas minas da Serra de Imataca. Acabam perdendo contato com a família e desaparecem. Por isso, há rumores de que as chacinas na região talvez sejam muito mais numerosas do que reconhecem as autoridades. “Eles só devolvem os corpos das pessoas quando alguém reclama”, diz Yamileth, que mora numa vila nas bordas da cidade e há dois anos perdeu o irmão naquela serra. “Quem passa para o lado de lá não volta mais.”
Enrique Romero, de 62 anos, trabalha com coleta de material reciclável e também no cemitério onde estão enterrados Junior Enrique e José Gregorio Romero, seus filhos mortos na chacina de março de 2016. Ele contou que os dois rapazes foram para as minas depois que correu um boato de que havia “estourado um rebuliço” – jargão usado quando se encontra um grande veio de ouro. “Eles foram conferir se era verdade e caíram numa emboscada.” Apesar dos perigos, Romero vê as minas como a única alternativa para a sobrevivência de muita gente. “Se a pessoa vai para o garimpo é para ajudar sua família”, afirma. “Mesmo correndo o risco de ser roubada ou morta, ela vai.”
A tragédia da dona de casa Rosa Campos se parece com a de Romero. Ela se mudou para Tumeremo com o marido e os filhos há três décadas. Em junho de 2017, seu filho Roy desapareceu nas minas e, juntando as histórias, Campos concluiu que ele fora assassinado. Apesar de incontáveis peregrinações a Tarabay, às minas e às portas das autoridades regionais, ela nunca conseguiu recuperar o corpo de Roy. Na sala de sua casa sem acabamento e com pouca iluminação, Campos me mostrou fotos do filho e contou que, por não ter conseguido encontrar o corpo, não têm um atestado de óbito dele. Isso a impede de regularizar a situação do neto Roy Luis, que está sob seus cuidados. Para ela, o desaparecimento do filho é uma ferida que não fecha. “Você não sabe o que fazer”, diz. “Eu vivo com a esperança de que a porta de casa de repente se abra, e ele apareça.”
“Para uns, o ouro é uma bênção, mas para mim é uma maldição”, diz Fidel Rico, o marido de Campos. “Os militares sempre nos param nos bloqueios da estrada e nos mandam tirar a roupa e sacudir cada peça para ver se cai ouro. Eu nunca pisei numa mina, mas tenho que passar por isso. Não consigo entender por que estamos nessa situação tão drástica. É melhor morrer, chorarem nossa morte e nos enterrarem.”
Em maio de 2019, o comandante da base militar de Tarabay, coronel Ernesto Solís e um grupo de cerca de dez homens invadiram a casa de Andreína Arcia em Tumeremo, queimaram a moto de seu marido, o mototaxista Victor Rivera, e o levaram embora, conforme ela denunciou ao Ministério Público em Ciudad Bolívar, a mais de 300 km de onde vive. Ela decidiu ir até Ciudad Bolívar porque, ao apresentar a denúncia à polícia de sua cidade, foi chamada de “prostituta” e expulsa. Arcia mora em Tumeremo desde criança e, como seus pais eram garimpeiros, costumava passar as férias escolares na região aurífera da Serra de Imataca. Quando se casou, afastou-se das minas. Para a dona de casa, que agora cuida sozinha dos dois filhos, o coronel resolveu matar Rivera porque achou que ele integrava um das facções criminosas que disputam o controle dos garimpos.
Moradores de Tumeremo dizem ter visto na serra homens uniformizados do Exército de Libertação Nacional, alguns deles com sotaque colombiano. Há quem os chame de guerrillos, “paramilitares”, “colombianos”, mas quase ninguém se atreve a dar o nome e sobrenome de algum deles. Jorge, que se mudou para Tumeremo há uns cinco anos, conta que foi levado até a serra para se reunir com o chefe da guerrilha, que estava interessado em uma propriedade dele. “Era um colombiano, dava para ver que tinha boa formação, boas maneiras. Ele se apresentou como líder do Movimento Revolucionário Che Guevara. Disse que já esteve nas fileiras do ELN, mas que esse outro movimento tinha nascido aqui e é formado, em sua maioria, por jovens venezuelanos.”
Em 14 de setembro, o deputado Américo de Grazia denunciou nas redes sociais que o ELN teria assassinado um grupo de garimpeiros em El Candado, mina de Tumeremo. À imprensa local, Grazia afirmou que forças militares em atividade na região estariam em parceria com o grupo guerrilheiro, que quer tomar o controle das minas das facções criminosas. Alguns moradores do lugar supõem que o coronel Solís ataca as facções porque tem um acordo com esses guerrilheiros e estaria dividindo com eles o domínio sobre as minas na Serra de Imataca. “Todos os que querem procurar ouro nos túneis e barrancos são obrigados a trabalhar para o coronel ou os guerrilheiros. Os garimpeiros são como escravos deles”, diz Claudia, que trabalhou durante anos nos garimpos na serra, vendendo produtos variados.
O trecho de 68 km entre Tumeremo e El Dorado está cheio de buracos e de pessoas com chapéus surrados pedindo dinheiro ao longo da estrada. Elas recolhem pedaços do asfalto na borda da via, postam-se diante dos buracos maiores, acendem pequenas fogueiras e derretem o asfalto para com ele tentar remendar as falhas. Como os buracos são enormes, os carros são forçados a diminuir a velocidade, o que permite que alguns motoristas deem uma gorjeta a esses remendadores de estrada.
El Dorado, fundada em 1894, é ainda mais marrom e maltratada que Tumeremo e El Callao. Apesar do nome, não há grande sinal de riqueza por lá. As construções inacabadas, com tijolos à vista e tetos de zinco, dividem espaço com quiosques precários. Há tanta poeira na via principal que não se consegue ver que ela é asfaltada. Como todas as ruas são estreitas e abarrotadas de pessoas, veículos e motos, é necessário uma precisão de relojoeiro para circular de carro.
Desde o dia anterior, a cidade está sem luz. A Praça Bolívar, contudo, passa por reformas: acabava de ser instalada ali uma estátua do herói venezuelano que dá nome ao local. “Foi o Fabio que trouxe”, diz Andrés, um morador de El Dorado. Fabio Enrique González Isaza é o pran de uma gangue que controla a região e todos chamam apenas pelo prenome. A estátua é imponente, de quase 4 metros de altura, e Simón Bolívar segura um livro cujo título, escrito em dourado, é Lei.
Em El Dorado, a Justiça é rarefeita, mas “lei” é o que não falta. Andrés me conta: “O ‘sindicato’ tem dois postos de controle, um deles na entrada da cidade, e ninguém rouba, todo mundo respeita. Mas, se alguém faz algo errado, é só você denunciar num desses postos, que o sindicato dá um jeito.” Segundo os moradores, a facção de Fabio estabeleceu uma tabela de castigos para manter a cidade em paz. Quem comete um roubo menor, leva apenas um tiro nas mãos. Se o roubo for mais expressivo, as mãos do ladrão serão cortadas. Para as mulheres que delinquem, o primeiro castigo é ter os cabelos cortados.
Fabio, que nasceu na Colômbia, mas naturalizou-se venezuelano, costuma caminhar pelas ruas da cidade em plena luz do dia, sem ser importunado pela polícia. “Aqui temos segurança graças a ele. Cinco anos atrás, tudo era muito perigoso. Agora, não. Até os castigos estão mais leves. Na semana passada, umas garotas foram denunciadas por quererem enganar com ouro, e só tiveram que dar uma volta carregando um cartaz. Depois, levaram uma surra. Antes a coisa era bem mais brutal”, conta Andrés. Outros insistem que Fabio não é sanguinário e prefere ouvir os dois lados antes de tomar uma decisão. Já o irmão dele, dizem, tem um temperamento intratável.
“Aqui a polícia faz pouca coisa, ou nada: só serve de enfeite”, comenta Luis, que veio para El Dorado há poucos anos, também atrás do ouro. “Mas é melhor assim. O Fabio arruma a igreja, a escola, o ambulatório e organiza eventos.”
As minas próximas de El Dorado são divididas e controladas por vários grupos subordinados a Fabio. “Esse é o sistema”, diz Andrés. “Alguns estão satisfeitos, outros não, por causa da comissão que têm que pagar para a causa” – outra gíria para designar um grupo criminoso.
Nas minas, o processo de extração do ouro recorre a balsas aparelhadas com dragas hidráulicas no Rio Cuyuni. Com uma mangueira e uma bomba de sucção, extrai-se do fundo do rio o material que será processado na mesma balsa. O material descartado volta para o rio, poluindo assim o curso d’água que abastece tanto comunidades indígenas como a famigerada prisão de El Dorado.
Por causa de seu trabalho humanitário, Pedro visita com frequência o Centro Penitenciário do Oriente – El Dorado, que foi tema de um livro do criminoso francês Henri Charrière, conhecido como Papillon. “A população do presídio triplicou nos últimos anos”, diz Pedro, que também contou sobre a vida dos condenados: “Os presos têm que carregar água do rio ou recolher da chuva, porque não existe água encanada. Eles mesmos cozinham com lenha, quando recebem mantimentos dos familiares. Muitas vezes, os funcionários roubam os mantimentos deles ou os retêm, para revender para os próprios presos.”
Luis, que veio a El Dorado para trabalhar nos garimpos e tem um primo preso no Centro Penitenciário, diz: “A tuberculose e muitas outras doenças se espalharam por lá. Muitas vezes nem o corpo de quem morre é liberado. A malária também se alastra.” O Centro tem uma equipe de malariologia, mas, segundo Luis, “os resultados não são confiáveis, porque às vezes os enfermeiros usam a mesma agulha para picar todo mundo. Toda essa gente morre à míngua, e os familiares não denunciam por medo.”
Pouco mais de 80 km ao Sul de El Dorado, fica o vilarejo Las Claritas. Várias facções criminosas dividem o controle do povoado e da jazida de minério próxima, Las Cristinas, que até 2011, quando ocorreu a estatização do setor, era comandada por empresas internacionais. Ali a extração do ouro é feita com uma técnica chamada fraturamento hidráulico, que consiste na escavação com fortes jatos de água, que deixam o terreno devastado, com enormes buracos. O estrago ambiental das minas é visível em imagens de satélites: enormes feridas marrons no meio da selva. É justamente essa técnica de mineração uma das causas da alta incidência de malária na região: os buracos abertos de maneira indiscriminada, e cheios de água, transformam-se em confortáveis hábitats para o mosquito Anopheles, que transmite a doença.
A malária foi praticamente erradicada na Venezuela na segunda metade do século XX, façanha atribuída ao médico Arnoldo Gabaldón, que conseguiu que o país fundasse um departamento de malariologia com status de ministério e fizesse do controle da doença um braço importante do sistema de saúde pública. “A malária estava sob controle, mas isso fez com que as pessoas se despreocupassem das causas”, afirma o malariologista Édgar Izarra. “Com a intensificação dos trabalhos de garimpo, a migração maciça para o estado de Bolívar e o descaso do governo, a doença voltou com tudo.”
Izarra, que foi aluno de Gabaldón e dirigiu o Departamento de Malariologia de Bolívar entre 2000 e 2002, diz que já não há recursos humanos nem materiais para combater a doença na Venezuela. “O número de doentes é um segredo de Estado”, ele diz. Mas a Organização Mundial de Saúde (oms), em seu relatório mundial de 2018, informou que a Venezuela tinha contabilizado 519 109 casos em 2017, perto do dobro registrado no Brasil, que possui uma população 6,5 vezes maior.
Embora o tipo de malária mais frequente na Venezuela, a do parasita Plasmodium vivax, não seja letal, as más condições sanitárias, o tratamento inadequado e o estilo de vida nas minas facilitam a repetição da doença, havendo pacientes que padecem do mesmo mal dezenas de vezes, sem que sejam necessariamente picadas pelo mosquito outra vez. Izarra explica que atualmente, quando uma pessoa é diagnosticada, recebe um tratamento padronizado que enfraquece o parasita, mas não o mata.
“O tratamento virou um negócio”, diz Hugo Lezama, diretor do Colegio de Médicos de Ciudad Guayana, que atende numa pequena clínica pediátrica nessa mesma localidade. Segundo ele, os garimpeiros tomam os primeiros cinco comprimidos do total de catorze e, “assim que sentem alguma melhora, vendem o resto e voltam para as minas”. Os remédios para a malária são distribuídos gratuitamente pelo Instituto Venezuelano de Seguridade Social (IVSS), a rede do sistema público de saúde fundada em 1944.
O tratamento para malária está disponível nos hospitais, como o Uyapar, um dos poucos em Ciudad Guayana. Orlando, um funcionário com o qual converso nos fundos do hospital, me diz que no Uyapar a maioria das alas está fechada. Há escassez de remédios e material hospitalar. “Todo mundo paga cada coisa do próprio bolso”, afirma. Antes de conversarmos, ele pediu para eu me afastar do corredor externo porque a diretora, que “não gosta de jornalistas”, instalara ali uma câmera de segurança.
O hospital é vigiado por milicianos, como são chamados na Venezuela os homens e mulheres da reserva militar e guardas nacionais. Com seus uniformes bege e vermelho, eles são geralmente usados pelo governo para intimidar as pessoas e controlar o acesso a locais, como os centros de saúde pública. Lezama afirma que esses milicianos e outros funcionários roubam o pouco que resta dos hospitais, e os pacientes têm que pagar em dólar pelo atendimento médico e por materiais, como seringas ou mesmo algodão.
Numa casa ao lado da entrada do hospital, exalava do necrotério um cheiro putrefato. Como não há ar-condicionado, suas portas e janelas estavam abertas. Mais cedo circulara o boato de que cadáveres tinham “explodido”, tão intenso era o mau cheiro. Mas Orlando esclareceu que o odor era de um cadáver que demorou mais de um dia para ser retirado do necrotério, onde não se fazem autópsias, nem há como conservar os mortos.
A situação de hospitais e centros de saúde em algumas cidades de mineração mais ao Sul é bem diferente, graças a doações voluntárias, algumas feitas por facções criminosas, segundo moradores. Em El Callao, por exemplo, o ambulatório é impecável, com ar-condicionado em quase todas as salas, disponibilidade de médicos e remédios, além de uma ambulância, cuja carroceria está estampada com os nomes de seus doadores, entre eles uma companhia estatal, uma associação de vizinhos e uma empresa de eventos.
Nas últimas três horas de viagem antes de chegar a Santa Elena de Uairén, cidade venezuelana na fronteira com o Brasil, a Rodovia Troncal 10 atravessa áreas de savana muito verdes, emolduradas por tepuis, montanhas de topos achatados e paredes retas, parecidas com colossais caixotes de pedra despejados sobre o denso matagal. A palavra tepui, na língua dos indígenas pemons, que habitam há séculos a região, significa “casa dos deuses”. Algumas dessas montanhas, de fato, estão bem longe do alcance dos homens, como o Monte Roraima, que no seu ponto mais íngreme tem 2 810 metros – quase sete vezes a altura do Empire State Building, em Nova York.
Cerca de vinte anos atrás, visitei essa região, como faziam centenas de jovens venezuelanos nas férias. A viagem incluía uma parada na Pedra da Virgem, uma rocha monumental numa curva da Troncal 10, e depois uma travessia pelo Parque Nacional Canaima, território de 30 mil km2 com cachoeiras gigantescas, como Salto Ángel, a mais alta do mundo. Agora, na entrada do parque, o que se vê são lixões – o sinal mais evidente das ameaças que pairam sobre o lugar. Também se percebem restos de incêndio na savana e alguns dos antigos acampamentos para turistas foram abandonados, transformando-se em largos espaços desolados. No Parque Nacional, há mais de cem comunidades indígenas pemons.
Melchor Flores é um líder pemom que trabalha como auxiliar do prefeito de Santa Elena de Uairén. Ele me recebe em seu escritório segurando a Constituição venezuelana, e diz que enfrenta militares, políticos e até líderes pemons que não seguem o que ele considera ser o legado de Hugo Chávez, de quem é um resiliente admirador.
Sem largar a Constituição, conta que a mineração não é permitida em apenas um dos oito setores indígenas no estado Bolívar – seis deles no Parque Nacional Canaima. “Os próprios capitães [como são chamados os líderes indígenas] que participaram da redação da Constituição estão indo contra o que ela estabelece. Lutamos duro por isso, e agora, como o ouro ficou caro, o capitão está destruindo a própria terra.”
“Os garimpeiros entram nas nossas terras e não temos como expulsá-los”, justifica o líder pemom Francisco, com quem conversei no quintal de sua casa, na comunidade onde vive, no Parque Nacional. Pouco antes de me encontrar, ele tinha se reunido com uma pessoa que obtivera uma concessão do governo para explorar uma mina dentro do seu território. Francisco, que é um homem desconfiado e de poucas palavras, explicou que alguns indígenas permitem o garimpo em sua área dentro do parque cobrando uma comissão de cerca de 10% da produção, e por vezes eles próprios vão a campo para garimpar.
“Os indígenas são os verdadeiros donos da terra, mas sempre saem perdendo”, afirma o padre Alberto, que há anos atua junto às comunidades da região. “Ficam com suas áreas desmatadas, a malária e as águas poluídas com mercúrio, entre outros venenos do garimpo.” Muitos são explorados nas minas, enquanto suas mulheres são submetidas à prostituição, segundo o padre. “Alguns tentam se sustentar com o garimpo artesanal de ouro e diamantes. A suposta civilização os transformou em predadores.” A febre do ouro não poupa nem os índios.
Santa Elena de Uairén tem crescido muito nos últimos anos, com novas construções que arrasaram morros antes verdes e desabitados. A população, conforme o último censo, é de quase 30 mil pessoas, mas com a crise no país e o aumento da migração estima-se que quase dobrou. Milhares de venezuelanos se mudaram para essa cidade na fronteira com Roraima, em busca de comida e trabalho – e continuam se mudando. No comércio, tudo é tabelado e vendido em reais, mas também se aceita ouro como pagamento em alguns lugares. A cidade tem numerosas casas de câmbio e negócios de compra e venda de ouro, com empregados oferecendo em cada esquina: “Reais! Dólares! Câmbio!”
Uma mina de ouro, conhecida como La Planta, numa das comunidades indígenas próximas do Centro, ainda é explorada. “A mina só sobrevive por causa das pessoas que vivem na área e não podem ir para mais longe”, diz a escritora Morelia Morillo, que mora em Santa Elena de Uairén. “Vamos supor que o indígena de uma comunidade próxima precise de dinheiro para um remédio e esteja em Santa Elena. Ele vai então para essa mina e tenta achar algum ouro. É uma ilusão.”
Na Troncal 10, somos parados no último posto de controle antes de chegarmos a Pacaraima, no Brasil. Ninguém nos revista, mas um guarda nacional pede “uma colaboração” de 20 litros de gasolina. Depois de explicar que não temos mais combustível, seguimos em frente. Esse é o trecho mais movimentado da rodovia. Como custa 10 reais a passagem em um carro compartilhado de Santa Elena a Pacaraima – cidades separadas por apenas 16,6 km –, as pessoas vão e vêm durante todo o dia, especialmente os venezuelanos, a fim de fazer compras ou levar as crianças na escola em território brasileiro.
Viam-se poucos venezuelanos em Pacaraima quando a visitei pela primeira vez, também há vinte anos. Eles raramente iam até lá, pois Santa Elena era na época uma cidade mais atrativa e com melhores serviços. Hoje, a pequena cidade em Roraima virou a porta de entrada dos venezuelanos no Brasil. Com isso, sua população, que era de pouco mais de 10 mil habitantes em 2010, passou a 17,4 mil em 2019, na estimativa do IBGE. O jornal O Globo apontou em julho deste ano que, segundo a prefeitura do município, o número de venezuelanos atendidos no único hospital da cidade havia aumentado 438% entre 2015 e 2018, passando de 1 856 para 10 mil. Nas escolas municipais, dos 2 755 alunos matriculados, 917 eram venezuelanos.
Mas não é só a imigração que tem mudado a vida de Pacaraima. No último ano, o negócio do ouro modificou brutalmente a cidade. Nas ruas, multiplicam-se as lojas de compra e venda de ouro e artigos para garimpo, e até vendedores ambulantes nas calçadas oferecem lanternas e outras ferramentas para o trabalho nas minas. O ouro também passou a circular no comércio, pois há venezuelanos que o utilizam para suas compras.
Perto da rua principal, caminhonetes oferecem transporte de Pacaraima até as minas na Venezuela. Custa 150 reais uma passagem até Las Claritas, a 248 km, onde está a grande jazida mais próxima. “Antigamente oferecíamos as viagens a partir de Santa Elena, mas mudamos para cá porque lá os guardas venezuelanos sempre pediam dinheiro”, diz um dos cobradores dessas rotas informais. Ele aproveita para me oferecer uma passagem com desconto.
O motorista Alessandro tem 26 anos e nasceu em Boa Vista, capital de Roraima. É um rapaz alto, com os braços cheios de tatuagens. É ele quem vai conduzir a próxima caminhonete para Las Claritas. “Está foda por lá”, comenta, quando digo que sou venezuelana. “Você vê pessoas sempre sem grana, indo e vindo, sem comida.” Pergunto a ele se já tentou a sorte no garimpo. “Me convidaram para entrar nas minas, tem muito brasileiro indo com maquinarias e para trabalhar. Falam que tem muito ouro. Mas eu não encaro, não. Se é tão bom como dizem, porque as pessoas estão desse jeito, tão estragadas e doentes?”
Enquanto eu voltava à rua principal de Paracaima para pegar o táxi que me levaria a Boa Vista, pude ouvir o cobrador das caminhonetes gritar: “Las Claritas! Las Claritas!” Ele se esforçava na pronúncia do nome melodioso da cidade, mas seu convite me encheu de tristeza.
[1] Para preservar algumas pessoas entrevistadas nesta reportagem, elas foram identificadas com prenomes fictícios.
PAULA RAMÓN – Jornalista venezuelana, é correspondente da AFP em São Paulo
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]